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Capítulo 3: verificando conteúdo gerado por usuário

Claire Wardle é pesquisadora convidada do Tow Center da Columbia University, trabalhando em um grande projeto de conteúdo gerado por usuário e noticiário de TV. Ela criou o programa de treinamento de mídias sociais para a BBC em 2009 e viajou o mundo treinando jornalistas em verificação de notícias via redes sociais. De dois anos para cá, Claire trabalha na Storyful. Claire é Ph.D em Comunicação pela Annenberg School for Communication na University of Pennsylvania. Ela mantém o perfil @cward1e no Twitter e possui um blog em clairewardle.com.

Em menos de uma década, a apuração de notícias foi modificada por duas importantes transformações.

A primeira é a tecnologia móvel. No verão de 2013, um importante marco foi alcançado. Pela primeira vez, mais da metade (55%) de todos os telefones móveis vendidos foram smartphones.

Por definição, um smartphone possui uma câmera de alta qualidade que tira fotos e faz vídeos, além de permitir que o usuário se conecte facilmente à internet para disseminar o material criado. Como resultado, mais e mais pessoas carregam no bolso a tecnologia necessária para filmar rapidamente eventos que acontecem ao seu redor, compartilhando o conteúdo diretamente com pessoas que podem se interessar pelo assunto, inclusive de maneira ainda mais ampla via redes sociais.

A segunda transformação foi o desenvolvimento da chamada web social. Quando o User Generator Content Hub da BBC teve início, no começo de 2005, eles esperavam que as pessoas mandassem conteúdo para um endereço centralizado de e-mail. Naquele momento, o Facebook tinha apenas pouco mais de 5 milhões de usuários; hoje, possui mais de um bilhão. O YouTube e o Twitter ainda nem haviam sido lançados. Agora, a cada minuto, 100 horas de vídeo são enviadas ao YouTube, 250 mil tweets são publicados e 2,4 milhões de postagens são compartilhadas no Facebook.1 O comportamento da audiência mudou substancialmente.

Em vez de filmar algo e, quando solicitado, enviar o conteúdo à imprensa, as pessoas filmam o que elas vêem e publicam no Facebook, YouTube ou Twitter. Pesquisas mostraram que uma parcela muito pequena da audiência possui entendimento suficiente do processo noticioso para considerar suas filmagens relevantes o bastante para enviá-las, sem que seja solicitado, a um veículo de notícias ou a outra entidade2. Na verdade, eles enviam o conteúdo para compartilhar a experiência com amigos e familiares.

Cada vez mais, em qualquer evento ao redor do mundo, há “jornalistas acidentais”: pessoas no lugar certo e na hora certa com um smartphone nas mãos. Anthony De Rosa, ex-editor de mídias sociais da Reuters e atual editor do Circa, escreve diz o seguinte: “o primeiro pensamento de quem filma ou fotografa não é: ‘eu preciso compartilhar isso com uma grande emissora de TV’. Porque eles não se importam com as tradicionais redes de TV ou, o que é provável, nunca tenham ouvido falar delas. No entanto, eles conhecem a internet e é lá onde eles decidem compartilhar o seu conteúdo com o mundo.”

De modo similar, durante uma situação de urgência, a audiência tende a buscar as redes sociais para obter informação, já que os próprios serviços de emergência estão utilizando as redes. Infelizmente, notícias desse tipo são um convite para a circulação de falsas informações, seja de forma deliberada ou não. Portanto, jornalistas e profissionais de ajuda humanitária devem sempre ter em mente, logo de início, que o conteúdo é incorreto. Durante emergências, quando a informação pode literalmente afetar vidas, a verificação é uma parte crítica da apuração noticiosa e do processo de disseminação da informação.

A importância da verificação

O fato de qualquer pessoa poder publicar conteúdo, classificando-o ou descrevendo-o como parte de determinado evento, deixa muitos jornalistas, particularmente editores, aterrorizados com a possibilidade de serem enganados ou de publicar conteúdo falso.

Algumas pessoas procuram enganar propositalmente a imprensa criando websites falsos, inventando contas de Twitter, alterando imagens no Photoshop ou editando vídeos. No entanto, muitas vezes os erros não são deliberados. As pessoas, ao tentar ajudar, às vezes acham conteúdo antigo erroneamente atribuído ao que está sendo noticiado e o compartilham. Abaixo está um exemplo de um homem se desculpando depois de tuitar uma foto enviada por email a ele por sua esposa. Ela disse que o tufão Usagi estava indo em direção a Hong Kong; na verdade, era uma imagem antiga de outra situação.

As pessoas baixam vídeos do YouTube e publicam em suas próprias contas, dizendo ser delas, o que causa outros problemas. Não se trata de tentar enganar – isso é conhecido como “scrape” na expressão em inglês, ou “raspagem”, em português – mas dificulta ainda mais o trabalho de achar quem fez o upload original do conteúdo.

A dificuldade de achar filmagens originais foi demonstrada quando o Comitê de Inteligência do Senado americano divulgou uma lista de 13 vídeos que tinham originalmente aparecido no YouTube. Essa lista foi usada por eles para procurar por evidências relacionadas ao ataque com armas químicas no leste de Gouta, na Síria, em 2013. Uma parte desses vídeos foi retirada de um conhecido canal sírio no YouTube que regularmente republica vídeos dos canais de outras pessoas. Isso sugere que os vídeos da playlist não eram vídeos originais, e sim “scrapes”. Usando vários tipos de técnicas de verificação, Félim McMahon, da agência Storyful, conseguiu descobrir as versões originais. Ele escreveu sobre o processo aqui. O que esse exemplo mostra é que essas questões já não são mais uma preocupação apenas para a comunidade jornalística.

Processo de verificação

Verificação é uma habilidade-chave, tornada possível por meio de ferramentas online gratuitas e antigas técnicas jornalísticas. Nenhuma tecnologia pode verificar automaticamente um conteúdo gerado por usuário com 100% de certeza. No entanto, o olho humano ou as tradicionais investigações também não são suficientes. É a combinação das duas que faz a diferença.

Quando um jornalista ou um profissional de ajuda humanitária acha uma informação ou um conteúdo via mídias sociais, ou os recebe de alguém, há quatro elementos para checar e confirmar:

  1. Proveniência: o conteúdo é original?
  2. Fonte: quem fez o upload do conteúdo?
  3. Data: quando o conteúdo foi criado?
  4. Local: onde o conteúdo foi criado?

1. Proveniência: confirmando a autenticidade de um conteúdo

Se você encontra algo num perfil de mídias sociais, você deve cumprir um checklist para ter certeza de que se trata de um perfil real.

Fique atento porque o site lemmetweetthatforyou.com consegue fazer um tuíte falso com extrema facilidade e que pode ser compartilhado como uma imagem.

Outro jeito de espalhar falsa informação no Twitter é inserindo informações falsas em um retweet (RT). Por exemplo: “Really? RT@JoeBiden I’m annoucing my retirement from politics.” (Na tradução do inglês: “Estou me retirando da política”, teria dito o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.) Isso faz parecer que você esteja apenas dando retweet no conteúdo original.

Outra artimanha é adicionar a marca azul de verificação do perfil do Twitter na foto de capa de um perfil falso, de modo a parecer que ele é legítimo. Para checar se uma conta é realmente verificada, passe o mouse na marca e você verá que o texto “contada verificada” se mexe. Se não acontecer isso, não é uma conta verificada.

O Facebook introduziu um programa de verificação similar, usando a mesma marca azul, para celebridades, jornalistas e autoridades políticas. Essas marcas azuis podem aparecer em páginas no Facebook ou em perfis pessoais. Assim como o Twitter, o Facebook gerencia o programa de verificação e decide quais pedidos de verificação aceitar. Em páginas do Facebook, como a do Usain Bolt (abaixo), a marca aparece embaixo da foto de capa, próximo ao nome da pessoa.

Em perfis pessoais, a marca aparece na foto de capa. Aqui está o perfil de Liz Heron, editora de mídias emergentes do The Wall Street Journal:

É interessante notar que, assim como no Twitter, as pessoas estão aprendendo a usar o Photoshop para colocar as marcas azuis em suas fotos de capa. Então, assim como no Twitter, se você passar o mouse por cima da marca azul, a frase “perfil verificado” vai aparecer.

Mas, assim como no Twitter, lembre-se que o processo de verificação está longe de ser transparente. Logo, com pessoas menos famosas, pode não ficar claro se uma conta não foi verificada ou se é falsa, ou se as pessoas não são famosas o suficiente para serem verificadas!

Mesmo com os programas oficiais de verificação, não há jeito rápido de checar se uma conta é real. É preciso uma meticulosa checagem de todos os detalhes disponíveis no perfil. Itens a ser conferidos incluem websites relacionados, localização, imagens e vídeos anteriores, atualizações de status ou tweets antigos. Quem são seus amigos e seguidores? Quem eles estão seguindo? Eles aparecem em listas de outras pessoas?

Se você estiver verificando um conteúdo rico em informações, como uma foto ou vídeo, uma das primeiras questões é saber se a foto ou o vídeo são originais. Usando ferramentas de pesquisa reversa de imagens, como o TinEye ou Google Images3, você pode saber se algo já foi publicado antes. (Para mais detalhes sobre como usar essas ferramentas, veja o capítulo 4 deste livro.)

Apesar de boatos propositais serem raros, eles ocorrem. Em anos recentes, apareceram vídeos – em geral inofensivos – produzidos por empresas de relações públicas buscando aparecer, e por estudantes fazendo um trabalhos de escola. Também houve tentativas deliberadas de criar falso conteúdo, particularmente na Síria e no Egito, onde desacreditar o “inimigo” pode significar compartilhar conteúdo aparentemente verdadeiro em canais de mídias sociais.

Algumas técnicas incluem criar um website falso, porém visualmente idêntico, e se responsabilizar por um ataque a bomba ou encenar um incidente horrível e culpar o outro lado. Manipulação é relativamente fácil de se fazer hoje e se você é Nancy Pelosi tentando criar uma fotografia de todas as deputadas, mesmo quando algumas delas estão atrasadas, ou um grupo de ativistas sírios compartilhando o vídeo de um homem aparentemente sendo enterrado vivo, qualquer jornalista ou profissional de ajuda humanitária deve partir do princípio de que aquele conteúdo gerado por usuário é falso. (Veja o capítulo 5 deste livro para mais detalhes sobre verificação de vídeo.)

2. Confirmando a fonte

O objetivo final ao tentar verificar conteúdo gerado por usuário é identificar quem originalmente fez o upload e entrar em contato com ele.

Neste ponto, é importante descobrir onde ele estava posicionado quando fez a filmagem, o que ele podia ver e o tipo de câmera usada. Essas questões fornecem os dados essenciais para responder à pergunta “como você sabe disso?”, que Steve Buttry apresentou no capítulo anterior.

Se alguém está tentando passar adiante falsas informações, deliberadamente ou não, fazer perguntas diretas obrigará a pessoa a admitir que, na verdade, não é ela a autora da filmagem. Adicionalmente, é possível cruzar referências, comparando as respostas a essas questões com informações obtidas ao examinar os dados EXIF de uma foto, ou comparando o vídeo de um local específico com o Geoogle Street View, situação que vamos detalhar nos capítulos subsequentes.

Mas, primeiro, você precisa achar a pessoa responsável pelo conteúdo. Pesquisar a história de quem fez o upload pode lembrar uma antiga investigação policial e talvez faça você parecer mais um stalker do que um jornalista ou pesquisador.

Algumas pessoas colocam um grande número de informações em seus perfis e um nome real (especialmente um que não seja muito comum) pode fornecer um bom número de informações. As pessoas usam diferentes redes sociais e em geral não se dão conta de como combinações de informações obtidas em diferentes lugares podem construir um dossiê substancial. Um perfil no YouTube com poucas informações pessoais, mas contendo apenas a URL de um site, oferece ao jornalista a chance de obter endereço, email e telefone pessoal pelo serviço de who.is4

3. Confirmando a data do evento

Checar a data de um vídeo pode ser um dos elementos mais difíceis de verificar. Alguns ativistas estão cientes dessa dificuldade e vão mostrar um jornal daquele dia, com a data claramente visível quando eles compartilharem suas filmagens. Isso obviamente não é infalível, mas se uma pessoa que faz uploads se torna conhecida e confiável das organizações, sejam elas noticiosas ou humanitárias, isso pode ajudar bastante.

Saiba que o YouTube data seus vídeos usando o Pacific Standard Time. Deste modo, pode dar a impressão de que o vídeo foi publicado antes de o evento acontecer.

Outro jeito de ajudar a determinar a data é usando informações meteorológicas. O Wolfram Alpha é um ferramenta de conhecimento computacional que, entre outras coisas, permite que você cheque o clima em uma determinada data. Apenas digite uma frase - em inglês - do tipo “como estava o tempo em Caracas em 24 de setembro de 2013” para obter um resultado. Isso pode ser combinado com tweets ou dados obtidos de sites de meteorologia locais, assim como outros uploads do mesmo local e no mesmo dia, para fazer um cruzamento de informações meteorológicas.

4. Confirmando a localização

Apenas uma pequena porcentagem do conteúdo é automaticamente geolocalizada, mas plataformas de mapas – Google Maps, Google Earth, Wikimapia – permitem que você se posicione perto de onde a câmera estava. Este é um das primeiras checagens importantes para verificar vídeos e fotos, e é realmente incrível o que se pode descobrir.5 Geolocalizar uma foto é sempre mais difícil, sobretudo se a imagem é um pouco mais antiga e em locais como a Síria, onde são constante os danos por bombas ou morteiros, ou Long Island após a passagem do furacão Sandy.

Ativistas que estão cientes dos desafios da verificação muitas vezes fazem uma panorâmica antes ou depois de filmar. O objetivo é identificar uma construção que pode ser localizada em um mapa, às vezes uma torre alta, um minarete ou catedral, ou poste de sinalização. Em parte, isso é resultado das organizações de mídia, que pedem para que eles façam isso6, ou dos próprios ativistas, que compartilham conselhos sobre as melhores práticas ao fazer upload de conteúdo.

Verificação como processo

Infelizmente, as pessoas muitas vezes enxergam a verificação como uma simples ação sim/não: algo foi verificado ou não.

Na prática, como descrito acima e nos capítulos subsequentes, verificação é um processo. É relativamente raro que todas essas checagens forneçam respostas claras. É, antes de tudo, uma decisão editorial sobre usar ou não um conteúdo proveniente de uma testemunha.

Dois recentes estudos acadêmicos analisaram o conteúdo publicado pela BBC e pela Al Jazeera em árabe. Eles descobriram que, enquanto as verificações eram feitas pela equipe editorial, e consideradas absolutamente necessárias, os resultados dessas verificações raramente eram compartilhados com a audiência.

Como Juliette Harkin concluiu em seu estudo, em 2012, “nem a BBC árabe nem a Al Jazeera árabe mencionaram explicitamente em nenhum de seus programas ou vídeos avaliados se as fontes foram verificadas ou se eram confiáveis. A explicação “esta filmagem não pode ser verificada”, comum no conteúdo colocado ao ar, esteve ausente em todo o conteúdo avaliado pelo estudo”.7

Há movimentações recentes para aumentar a transparência sobre as verificações feitas por jornalistas quando um conteúdo gerado por usuário é usado por uma organização de notícias. A AP e a BBC estão trabalhando para tornar seus processos de verificação mais claros; em agosto de 2013, a BBC disse que, desde um estudo compreensivo sobre o uso de conteúdo gerado por usuário durante a Primavera Árabe, “a BBC adotou uma nova forma de redigir notícias sobre todos os vídeos gerados por usuário em que a verificação independente não foi possível”, fazendo com que sua audiência soubesse o que eles sabem.

É provável que, dentro de alguns anos, uma nova gramática de verificação venha à tona, com a audiência esperando saber o que é conhecido e o que não é conhecido sobre um conteúdo gerado por usuário retirado das mídias sociais. Com a audiência capaz de assistir à mesma filmagem que as organizações noticiosas e de outros que apuram conteúdo, este nível de transparência e responsabilidade é necessário.


  1. Essas estatísticas mudam a todo momento, mas esta é a mais recente tentativa de medir a atividade nas redes sociais mais populares http://blog.qmee.com/qmee-online-in-60-seconds/

  2. http://www.bbc.co.uk/blogs/knowledgeexchange/cardiffone.pdf

  3. Um jornalista sempre deve checar essas duas ferramentas. Às vezes os resultados podem vir em uma, mas não na outra.

  4. Veja esses dois posts de Malachy Browne, editor de notícias na Storyful, sobre como rastrear pessoas que fazem uploads usando informações da web social: http://blog.storyful.com/2012/10/09/find-that-fireball-when-journalist-turns-stalker/ e http://blog.storyful.com/2013/04/16/finding-facts-in-the-heat-of-the-moment/

  5. Veja este post sobre a geolocalização de uma explosão de um tanque na Síria: http://blog.storyful.com/2013/03/13/the-changing-nature-of-conflict-and-technology/

  6. Veja o estudo Harkin

  7. Veja estudo Harkin, p. 31


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