Estudo de caso 5.2: investigando um suposto massacre na Costa do Marfim
Malachy Browne é editor da Storyful, a primeira agência de notícias da era das redes sociais. Sediada em Dublin e com equipes na Ásia e nos Estados Unidos, Storyful ajuda seus clientes a descobrir, verificar e distribuir os mais valiosos conteúdos gerados por usuários através de mídias sociais. Antes de Storyful, Browne criou e editou o Politico.ie, um site irlandês de política e arquivo de notícias. Ele trabalhou para a revista de política irlandesa Village entre 2006 e 2008, além de ter sido editor do site da revista, Village.ie. Tendo trabalhado anteriormente como programador, Browne acredita firmemente em inovações nas redações e na capacidade da tecnologia para fortalecer o jornalismo. Ele é natural da cidade de Broadford, no Condado de Limerick, e vive em Dublin. Seu Twitter é @malachybrowne.
Em março de 2011, um vídeo publicado no YouTube mostrava o que se afirmava ser o assassinato de pelo menos seis mulheres, cometido por forças de segurança da Costa do Marfim (FDS) durante um protesto em Abobo. A manifestação ocorreu durante um período de agitação social, quando o presidente Laurent Gbagbo continuou no poder depois de ser derrotado nas eleições presidenciais de novembro do ano anterior.
A pedido de um cliente, a Storyful começou a verificar o vídeo dois anos após o acontecimento. As imagens mostram um grande grupo de mulheres gritando "ADO", uma referência a Alassane Dramane Ouattara, rival de Gbagbo. Depois, aos 3 minutos e 32 segundos, veículos blindados aparecem no enquadramento e armas de grande calibre são disparadas. Várias pessoas parecem estar feridas mortalmente. Na época, alguns marfinenses afirmaram que os ferimentos haviam sido encenados. O Ministro de Defesa do país colocou o vídeo em dúvida e os apoiadores de Gbagbo afirmaram, em reconstruções no YouTube, que ele era falso (aqui e aqui).
Verificar vídeos de uma notícia de última hora é, em certos aspectos, mais fácil do que essa forma de investigação retroativa. Informações que corroboram ou desmascaram um vídeo são mais acessíveis num período de tempo recente; informações relacionadas a um acontecimento mais antigo muitas vezes estão escondidas nas profundezas das redes sociais. Pesquisas de arquivo podem ser difíceis ou impossíveis.
Com essas limitações em mente, procederei a explicar como trabalhei para tentar verificar o vídeo.
Coletar informações sobre o contexto do evento
Eu não conhecia os detalhes do suposto massacre, então pesquisei no Google os termos "Women killed Gbagbo March 3 2011” ("Mulheres mortas Gbagbo 3 de março 2011"). Apareceram diversos textos (aqui e aqui e aqui) descrevendo o local aproximado do acontecimento e a sequência de eventos. Essa busca também trouxe como resultado uma declaração feita pelo então Ministro da Defesa do país, afirmando que as cenas foram encenadas.
É importante ressaltar que os resultados também trouxeram palavras-chave que pude usar para executar uma busca mais focada. Usando esses termos para fazer uma pesquisa histórica no Twitter e no YouTube, desenterrei relatos de testemunhas oculares e conteúdos enviados por cidadãos. (Sempre tente se colocar no lugar da pessoa que faz upload dos vídeos e imaginar que "tags" ela usaria e como ela descreveria o vídeo, entre outras informações.)
Localização
Segundo relatos, a manifestação e o tiroteio aconteceram em uma rotatória nas proximidades de Abobo, um distrito no norte de Abidjan. Mais especificamente, um relato afirmava que o fato havia ocorrido em um grande cruzamento/rotatória na Autoroute d'Abobo, ao lado da área conhecida como Abobo Gare. Nele, uma testemunha descreveu que as forças de segurança passaram por uma rotatória, viraram para trás e dispararam em direção às mulheres "antes de voltar para Adjamé". Adjamé fica ao sul de Abobo, o que nos dava uma pista sobre o sentido do tráfego.
De acordo com um relato da época publicado no Le Patriot em 8 de março, manifestantes se reuniram "na interseção rotatória de Banco" (mapeada abaixo). Pesquisas em um fórum local mostraram que a rotatória foi palco de manifestações semelhantes anteriormente.
O Google Maps mostra duas grandes rotatórias. Uma delas, a Carrefour Banco, fica no extremo sul de Abobo, em direção a Adjamé. Ela correspondia ao relato anterior, então a utilizei como ponto de partida.
A posição de postes e semáforos e o alinhamento das árvores filmadas no vídeo a partir dos quatro minutos estavam de acordo com a visão de satélite da esquina noroeste do Carrefour Banco, como mostrado nos círculos brancos acima. O grande edifício com duas saliências proeminentes sobre o telhado (circulado em vermelho) também se alinha com um edifício que vemos a distância enquanto o comboio de veículos de segurança desaparece de vista. Isso coincide com a direção do tráfego mostrada na imagem de satélite acima e com o relato de uma testemunha ocular de que os veículos iam para o sul, em direção a Adjamé.
Uma imagem do vídeo (acima), no entanto, não correspondia às imagens de satélite. Contamos três grandes árvores de folha caduca enquanto o comboio entrava na rotatória, mas o Google Maps mostrava apenas duas dessas árvores. O vídeo foi filmado em 2011 e as imagens de satélite datavam de 2013; por isso, talvez uma árvore houvesse sido cortada. Então nós olhamos imagens históricas de satélite no Google Earth. Imagens de 2009 mostram três grandes árvores de folha caduca nesta esquina.
A terceira árvore, que não consta nas imagens de satélite 2013, está circulada na imagem abaixo. Ela foi girada em 180 graus de norte a sul. Por este ponto de vista, podemos ver que a posição da câmera estava do outro lado da estrada. Posteriormente, falei com uma fonte respeitável, conhecida da equipe de Storyful, que conhecia bem o vídeo e que havia visitado Abobo para informar sobre o "massacre". A fonte confirmou que esse era o ângulo da câmera.
Data
A data do tiroteio é corroborada por vários depoimentos independentes e vídeos compartilhados nas redes sociais. Esses são encontrados de forma retroativa através de uma variedade de buscas: no Twitter, no Topsy ou Topsy Pro (que permite que um intervalo de data seja definido) e no YouTube com resultados ordenados por data de upload.
Alguns dos passos que eu segui:
- Usei a busca histórica do Twitter para gerar pistas analisando resultados a partir de 3 de março de 2011.
- Examinei tweets e perguntas sobre o acontecimento e encontrei esta resposta e esta. Essas fontes são testemunhas em potencial, ou pessoas que poderiam identificar testemunhas. A primeira fonte informa sua localização como sendo Cocody, Abidjan, e a segunda como Abidjan.
- Também localizei esta pessoa, que enviou um vídeo de Abobo e de comícios anteriores do RHDP. Ao checar outros twitvids nessa conta, cheguei a um vídeo enviado no dia do protesto.
- Examinei em mais detalhe essa linha do tempo no Twitter e encontrei outras referências ao RHDP naquele dia. Isso me levou a outros links, como esta reportagem sobre o acontecimento. Ela incluía uma foto creditada à agência Reuters, que mostrava vítimas que eram similares às que apareciam no nosso vídeo.
- Ao usar a busca de imagens no Google nessa imagem, confirmamos que ela não havia sido usada antes do dia 3 de março. No entanto, os resultados também mostraram que uma matéria publicada no The Guardian creditava a agência AFP/Getty Images, em vez da Reuters. Isso significa que um fotógrafo confiável estava no local.
Me aprofundei mais na análise da foto, mostrada abaixo.
A imagem é consistente com a imagem da vítima aos 5 minutos e 30 segundos no vídeo principal. A vítima está coberta por roupas e folhas verdes usadas por muitos dos manifestantes. Observe a camisa apertada azul escuro usada pela vítima e o vestuário característico com uma estampa xadrez de linhas vermelhas, laranjas, brancas e escuras, mostrado a seguir em uma aproximação.
O site France 24 Observateurs também recebeu fotos do acontecimento a partir de fontes em Abidjan. Nós da Storyful confirmamos isso com eles.
Outras buscas desvendaram um foto-diário publicado aqui por um jornalista da agência France-Presse, Issouf Sanogo. Ele entrevistou uma mulher chamada Sirah Drane, que afirma ter ajudado a organizar a manifestação no dia 3 de março. Drane diz que estava segurando um megafone para se dirigir à multidão que se reuniu em uma rotatória em Abobo. Uma mulher com descrição correspondente é vista no vídeo.
O vídeo se relaciona com outros três vídeos do evento. Eles foram documentados pelo Storyful na época e depois puderam ser encontrados através de uma busca no YouTube, usando termos de pesquisa identificados anteriormente.
O primeiro vídeo foi enviado no dia do tiroteio, poruma conta do YouTube registrada na Costa do Marfim que foi criada especificamente para isso. Não havia nenhuma outra atividade na conta que pudesse oferecer informações em relação à fonte. As mesmas mulheres feridas são filmadas no vídeo, assim como o edifício quadrado no plano de fundo.
Um segundo vídeo foi enviado a outra conta de YouTube registrada na Costa do Marfim na manhã de 4 de março às 09:06:37 GMT. O usuário descreve o vídeo como "várias mulheres mortas" na "manifestação do RHDP de ontem", ou seja, 3 de março.
Nenhum desses vídeos ou fotos existia antes do dia 3 de março, sugerindo com um alto grau de certeza que essa foi a data do evento.
Envio original
O vídeo foi enviado para o YouTube em 4 de março de 2011. No entanto, é muito provável que ele tenha se originado em uma conta do Facebook ou de outro lugar e tenha sido remendado para o YouTube.
A conta do YouTube está registrada nos Estados Unidos e está ligada a um site extinto, onemendo.com. A conta parecia ser operada por alguém ligado a emigrantes jamaicanos que vivem em Nova York ou Nova Jersey, porque continha material promocional de uma boate local, DanceHallReggae.com.
Vídeos publicados na mesma época, em uma conta afiliada no Vimeo, indicam que eles estão baseados em Rochester, Nova York. Uma conta de Facebook afiliada também contém links para músicas de DJs jamaicanos, mas não dá mais pistas sobre as origens do vídeo e não foi postado um link para ele no dia 3 de março de 2011. Vídeos de uma novela senegalesa também foram publicados na conta do YouTube.
O vídeo é autêntico?
Os indícios acima confirmam a localização e estabelecem que a data do vídeo muito provavelmente era 3 de março. No entanto, a questão central é: o vídeo mostra mulheres que participavam do protesto sendo mortas a tiros pela FDS naquele dia?
Houve afirmações de que os assassinatos são encenados e que corpos foram colocados na rua depois que as forças de segurança foram embora. Essas questões são sérias e merecem uma investigação.
Nesta declaração, o Ministro de Defesa de Gbagbo, Alain Dogou, se referiu ao surgimento desse vídeo amador no dia 4 de março. Ele disse que uma mulher havia sido instruída a deitar-se no chão (e de fato ouvimos "deite, deite" no vídeo). Dogou disse que é "difícil dizer" se o vídeo foi filmado no local relatado por jornalistas. (Nós confirmamos o local). Ele também disse que jornalistas internacionais não estavam cobrindo o protesto porque estavam participando de uma coletiva de imprensa da UNOCI ou outro evento relacionado ao Conselho de Ministros. Finalmente, ele reconheceu que uma Marcha de Mulheres aconteceu em Abobo naquela data.
Perguntas sérias que surgiram:
- Por que a câmera apontou para longe das pessoas feridas por tanto tempo enquanto o comboio entrava na rotatória?
- Todas as vítimas teriam recebido os tiros a poucos metros umas das outras?
- Todas elas teriam caído com o rosto para baixo, como fizeram no vídeo?
- Os rostos rapidamente obscurecidos por roupas. Por que isso acontece?
- No vídeo, alguém diz a uma mulher ensanguentada que deite-se no chão, como descrito pelo Ministro da Defesa. Por que isso acontece? Devido à preocupação com seu estado de saúde ou para encenar um ferimento?
- O "massacre" cria um frenesi de emoção no vídeo; isso é real ou os outros manifestantes foram enganados ou cúmplices de um "massacre" encenado?
Várias testemunhas deram relatos convincentes de que os ferimentos foram realmente resultado do suposto massacre. Um médico do Hospital de South Abobo é citado nas páginas 63 e 64 desse Relatório da Human Rights Watch. Ele diz ter atendido vítimas do tiroteio:
Um médico que tratou muitas mulheres que não sobreviveram disse que suas lesões eram claramente causadas por armas pesadas, e não por balas. O médico e duas testemunhas disseram à Human Rights Watch que a cabeça de uma das vítimas havia sido completamente separada de seu corpo. Outras vítimas, duas das quais não sobreviveram devido à gravidade dos ferimentos, foram feridas por tiros de metralhadora.
(O vídeo realmente parece mostrar uma vítima cuja cabeça foi explodida.)
A reportagem do New York Times trouxe falas de duas testemunhas:
"O tanque da frente começou a atirar", disse um morador de Abobo, Idrissa Diarrassouba. "Imediatamente, seis mulheres foram mortas. Eu estava bem ali, ao lado delas. Elas simplesmente caíram."
“Houve uma explosão de tiros de metralhadora”, disse [a testemunha, Idrissa Sissoko]. Ele também afirmou ter visto seis mulheres serem atingidas por tiros. “Eu vi seis corpos jogados no chão, de repente”, disse ele. De acordo com [esse relato](<http://globalvoicesonline.org/2011/03/04/cote-divoire-who-killed-the-seven-women-protestors-videos/>), uma fonte militar disse a um jornalista da Reuters que o tiroteio foi um acidente resultante do nervosismo das forças de segurança após confrontos anteriores.
Conclusão
Podemos dizer que a data e o local estão confirmados com um alto grau de segurança. A fonte original, por outro lado, não está, então não conseguimos falar com a pessoa que gravou o vídeo.
Em última análise, o vídeo mostra o que afirma mostrar?
Não podemos determinar com 100% de certeza com o material que foi coletado. Além de conseguir contactar e entrevistar a pessoa que fez o upload, seria importante reunir mais depoimentos de testemunhas, médicos que trataram as vítimas e das famílias das vítimas. Para identificar as vítimas, nós poderíamos tentar fazer uma investigação mais detalhada do primeiro vídeo, dividindo-o quadro a quadro nos momentos-chave do tiroteio para tentar encontrar maneiras de identificá-las e depois de rastrear pessoas relacionadas a elas que sobreviveram.
Mesmo com todos os fatos comprobatórios e informações que fui capaz de reunir, o veredito sobre este vídeo ainda não é definitivo.